Para continuar respirando continue lendo e escrevendo.
Meu
pai foi mais um Silva que nasceu no Brasil em 1943, penúltimo ano da Segunda
Guerra Mundial. Dia 12 de maio foi o nascimento dele, que também chamo de amigo
e mentor. Na cidade de Macaparana, interior de Pernambuco, ele foi batizado com
o nome de José João da Silva, mas ficou conhecido apenas como “Silva”. Na sua
infância, quando a educação não era para todos, trabalho infantil era visto
como normal. Com oito anos de idade precisou trocar a sala de aula pelas
tarefas no canavial. Quando a prioridade era ter comida em casa, a criança ganhava
ofício de adulto e perdia o direito de ser aluno.
Foi um garoto que esquecia o
tanto que perdia para focar no quê precisava ganhar. Quando adulto, continuou
apreciando o nascer do sol no canavial e enquanto trabalhava no corte da
cana-de-açúcar, cantava repentes nordestinos. Já que as mãos não sabiam
escrever, a memória anotava a canção. Em 1961 Silva casou-se com a jovem Joana
Joaquina da Silva. Uma nova família Silva era formada. Ele no auge de seus
dezoito anos e ela recém-feitos 24. Quando mamãe chegava ao canavial com o
almoço de papai, a voz dele cantando era o único sinal que ela precisava
seguir. No ano de 1990, meus pais seguiam trabalhando no canavial, mas agora, já em
casa tinham cinco filhos.
Um garoto de nome Natalício e quatro garotas
batizadas de Silvana, Maria, Terezinha e Josefa. A oportunidade de estudar que
papai não recebeu, ele se esforçou para entregar aos filhos. No dia 11 de maio
do mesmo ano, uma menina recém-nascida, abandonada no hospital da cidade e
colocada para adoção, começou a fazer parte dessa família Silva. Ganhei o nome
de Maria Aparecida da Silva, em homenagem a padroeira do Brasil e pelo fato de
eu ter aparecido na vida deles, da forma que foi.
Ganhei os anos vendo meus
pais dividindo o pouco para todos, sem reclamar das condições. Mesmo cansado de
trabalhar o dia todo no canavial, era de lei separar um tempo para contar
histórias aos seus filhos. Noite sem energia era motivo de reunião para contar
estrelas e histórias. Ele não precisava escrever para saber cada linha de seus
contos autorais. Com cinco anos comecei a estudar e para eles era uma vitória
colocar mais uma filha na escola. Eu sempre soube que estudar era um
privilégio, que todos merecem, mas nem todos recebem. Desde cedo amava os
contos contados por meu pai e depois peguei o gosto por escrever minhas
próprias histórias.
Meu sempre sempre disse:
“Não pare a leitura nem a escrita”. Sua única vontade era que eu seguisse lendo
e escrevendo. Eu esperava ansiosa por cada novo aniversário, já sabendo que
ganharia um livro de presente. Em 2004, quando na escola cada aluno ganhou dois
livros de literatura nacional, foi como comemorar três aniversários em um mesmo
ano. Papai e mamãe sempre incentivaram o meu virar de páginas. No dia que ela
me comprou uma enciclopédia, eu tremi como quem segura o mais importante dos
ouros. Ela chorou orgulhosa com papai e disse: “Você precisa de um livro
grande”. Com esse presente comecei o normal médio, preparatório para o
magistério. Meus pais felizes por terem uma filha estudando para ser professora
e meus irmãos que terminaram o ensino médio, esperavam que eu fosse além.
Foram
quatros anos lecionando em projetos de alfabetização infantil, juvenil e de
idosos. Ver mamãe estudando no auge de seus 71 anos me fez perceber que educação
é desejo impossível de cessar. Educação é como água, quanto mais você têm, mais
você precisa. Ela não pode ser tratada como privilegio de poucos, ela é um
direito de todos. Na noite que dei aula na turma de mamãe, era impossível não
notar o orgulho presente em seu sorriso e olhar. Quando me formei no ensino médio,
eu sabia que aquela vitória antes de ser minha era deles. Só caminhei porque meus
pais preparam o caminho.
A decisão de prestar vestibular para a Universidade
Federal de Pernambuco causou um misto de medo e alegria. Deixar a filha mais
nova morar sozinha na capital, era motivo de medo. Mesmo assim, eu estudava recebendo beijo na testa,
cada vez que papai ou mamãe passavam pela sala. No dia da prova, em plena
madrugada, papai me levou à prefeitura da cidade para pegar o ônibus que
levaria os candidatos até Recife. No caminho, pela janela , eu olhava o nascer do sol colorindo
o mesmo canavial que papai trabalhou por tantos anos. Eles carregavam um
sobrenome comum, mas a força deles era única.
Em 2010 me tornei caloura da UFPE e moradora
da república universitária. Passei para o curso de Artes Cênicas, porque foi
impossível fugir da vontade de contar e escrever histórias. O amor pelos livros
e pela escrita foi herança que ganhei dos meus pais. Um legado que superou o
tempo e mesmo nas dificuldades se firmou. Lembro-me que ao entrar na biblioteca
central da universidade, eu quis ligar para papai e dizer: “Paraísos existem e
podemos levá-los para casa por oito dias”. Eu não precisava esperar meu
aniversário para ler um novo livro. Mesmo não sendo alfabetizados, meus pais tinham a consciência da
competência de um exército de palavras. Nos quatro anos de graduação eu
lecionei artes, também trabalhei como atriz, eu viajei com grupos de teatro e
escrevi muitas histórias.
Em abril de 2014 foi a minha formatura e se existe
palavra para explicar o choro de mamãe ao me vê usando a beca, me falem, pois
ainda não aprendi tais palavras. O abraço que ganhei de mamãe naquela noite,
foi a assinatura em uma história que escrevemos juntas. Existem abraços que de
tão apertado cabem o mundo. Papai, por conta da asma, não assistiu minha
formatura, mas viu por vezes e mais vezes, cada foto daquela noite. Dias depois,
minha irmã contou que ouviu papai falar ao amigo a seguinte frase: “A filha de
um trabalhador rural tem diploma de professora”. Quando falei que iria morar no
Rio de Janeiro para tentar a vida na arte e na comunicação, um novo medo visitou os
olhos dos meus pais. Na noite que comprei a passagem, papai me disse o seguinte
conselho “Vá atrás da sua felicidade e só pare quando encontrar”.
Pisando no
Rio de Janeiro sem conhecer ninguém, notei que cada estado é um mundo e cada
pessoa é um planeta desconhecido que devemos ter a sensibilidade de querer
conhecer. Em 2015 visitei meus pais para comemorar seus cinquenta anos de casados.
Em 2016 não consegui visitá-los e no ano seguinte mamãe faleceu. Não consegui
me despedir dela, eu cheguei atrasada para o nosso último encontro. Papai continuou
me dizendo: “Não pare a leitura nem a escrita”. Ele sabe como é difícil
continuar na dor e por isso me ajudou a não desistir. Aprendi com meus pais que
amar exige coragem, renúncia e paciência. Amar a leitura e a escrita segue essa mesma regra.
Mamãe vive em cada palavra de todas as frases que eu escrevo.
Quando lanço um texto novo no meu blog, sei que lá em Pernambuco minhas irmãs farão
a leitura dele para papai. Quando terminei meu primeiro livro pensei: vou amar
ler mais essa história para papai e sei que mamãe vai ouvir também. Mais que um
sobrenome, uma casa ou uma família, meus pais me deram o ar. Porque para mim,
arte é ar. Ela existe porque só a vida não satisfaz. Leitura é pulsação
necessária para quem quer continuar vivendo. A escrita é a forma que temos para
lutar sem precisar ferir ninguém. Ler é o caminho mais curto e rápido para um
bom futuro. Quando papai, até hoje me diz: “Não pare a leitura nem a escrita”;
ele quer me lembrar das únicas armas que preciso ter e usar: livro e escrita.
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